segunda-feira, maio 18, 2009

Prova de aferição pode rimar com discriminação?

Acabei de deixar um comentário no blogue do Paulo Guinote a propósito de um desafio sobre a Prova de Aferição de Língua Portuguesa que passei a manhã a vigiar.


A Prova De Aferição De Língua Portuguesa 2009
Paulo Guinote
Inovou ao começar com um texto dramático (obrigado pela dica, Reb). Interessante alternativa. Vou agora tentar ver o resto e já darei notas da prova.
Aceitam-se opiniões a quem já a viu ao vivo e a preto e branco.



Alonguei-me mais do que previa nesse comentário e reproduzo aqui o que lá deixei... Estarei a exagerar?

Comentário:
Para mim o mais grave foi o tema da composição. Confesso que fiquei preocupada. Explico: o que se pretende avaliar? Hábitos de leitura, estrato socio-cultural e hábitos associados? Preferências e gostos pessoais? (Como escrever algo bonito sobre um tema que me desagrada?)…Memória de nomes de autores e livros lidos? Ou a expressão escrita, organização de ideias, criatividade… ?
Lembro-me dos meus mais de 20 anos numa escola da periferia de Setúbal… etnia cigana, meninos do bairro da Bela Vista… muitos sem casa, sem família… meninos de zonas ainda profundamente rurais onde a leitura não estava (está) enraizada nos hábitos culturais da vida de todos os dias… E não me falem do PNL ou das Bibliotecas Escolares que (não) há em todas as escolas. Não se obriga uma criança a amar a leitura só porque achamos isso importante para o seu desenvolvimento… Todos sabemos a influência do ambiente, do exemplo em seu redor, da forma como cresce com ou sem livros perto… (E mesmo assim…).

O processo é moroso na escola para conseguir desenvolver esse amor pela leitura quando ele não existe já… Na minha sala crianças perguntaram “e se eu não me lembrar do nome do autor?” “e tem de ser um livro preferido ou um livro qualquer?”, “posso escrever diálogos?”. A criança pode ainda não ter lido o suficiente para ter um livro preferido… e tentar “resolver o problema” da exigência da composição com um livro qualquer de leitura obrigatória que leu na escola a “mando”… e desapaixonadamente. Dizer autor, nome do livro, resumo do assunto e até a história de como o livro lhe foi parar às mãos? O que é isto? Uma criança a quem nunca ninguém ofereceu um livro, o comprou, ou os tem em casa numa Biblioteca arrumadinha,linda e recheada… conta o quê? “Fui obrigado a requisitar na Biblioteca porque tinha de ler para as aulas… mas depois nem li bem nem me lembro quem escreveu…”. Profundamente inspirador para um dia de prova…
Mais valia a célebre receita do “Faz uma redacção sobre a Primavera”…ou… pelo menos deixar a criança escolher uma qualquer actividade que sinta prazer em realizar… descrevendo-a ou histórias com ela associadas…
Percebeu-se o desconforto inicial em algumas crianças e estamos a falar de uma classe essencialmente média/alta na minha escola.
Havia mesmo necessidade de misturar as coisas e submeter as crianças a uma pergunta que é claramente discriminatória e segregadora, num espaço supostamente dedicado apenas a avaliar a expressão escrita?
Já depois da prova acabada, a colega que comigo vigiou os alunos contava-me que o filho detestava ler e uma vez ganhou um prémio de escrita num concurso da Biblioteca da Escola… escrevia lindamente…
Estarei a ver mal? Ou há aqui qualquer coisa estranha? Alguma intenção que me escape?
Ou a tradição das composições (lembro-me que adorava escrever histórias, acabar contos, inventar heróis, imaginar magias…) já não é o que era?
Termino com uma história. Fiz a “escolinha quase toda” em Lisboa” e tive amigos de todos os estratos sociais. Um dos mais queridos amigos era menino mais de rua que de casa… Tomava banho no rio Tejo, pendurava-se na parte de trás dos eléctricos, apanhava uns pardais com a fisga, jogava à bola na rua… Sabia que eu e a minha irmã líamos nos tempos livres, íamos ao cinema com a Mãe, víamos exposições, estudávamos com gosto e sem custo, frequentávamos o Lisboa Ginásio Clube (eu até cheguei a frequentar aos Sábados um espaço de arte para miúdos, na ARCO). Um dia, perguntou-nos muito espantado: “oiçam lá, vocês nunca se divertem?”.
Temos de acolher as diferenças, respeitá-las e exigir tudo para que todas as crianças possam construir em si as ferramentas que lhes permitam ultrapassar as fronteiras sociais e fazer os caminhos a que todos têm direito se quiserem reger-se pelos padrões “da maioria”… Mas é preciso tempo para essa construção.

Será que a igualdade de oportunidades (tão apregoada no discurso “das oportunidades”) se constrói com este tipo de pergunta aos 11 anos numa prova nacional para todos os meninos, partindo do pressuposto de que têm todos a mesma cor, forma e feitio dos mais privilegiados?

(E acrescento - não deixei isto no comentário - Será que, independentemente de se ter acesso ou não aos livros, há necessidade de impedir a criança de criar e se recriar num texto escrito, sem ser discriminada pelos seus gostos pessoais ao ser-lhe proposto que escreva sobre algo supostamente real, mas que pode não ser a sua realidade? Não seria diferente uma pergunta do tipo: "Descreve as melhores qualidades do teu Pai e da tua Mãe e conta uma história engraçada que tenhas vivido com eles...)

ADENDA:
A este comentário seguiu-se outro com outra perspectiva. A discussão é interessante de seguir e pode ser consultada aqui. Roubaram-nos o tempo na Escola para reflectir sobre questões importantes. Pouco falamos do que interessa. Nestes comentários reflecte-se um pouco sobre a função da língua... Encerrei o meu contributo, mas será previsível a continuação da discussão do tema.

4 comentários:

Isabel Preto disse...

Nem mais, Teresa!
Se lhes pedissem para escrever sobre as suas vivências, de certeza todos saberiam o que escrever!
E começar com o texto dramático, que muitos professores nem chegam a abordar?
Até agora era sempre a narrativa, o que lhes agrada muito mais.
Eu vigiei o 4ºAno e também achei confusa a prova para crianças que estão num nível do concreto.
Análise sintáctica: A leitura é muito interessante!
Alguma vez, miúdos de 4ºano viram frases destas nas aulas?
Normalmente, é mais coisas do género:
O João come uma maçã.
Texto: era um diálogo entre as personagens do texto, a combinarem como iriam convidar os animais amigos, para uma sessão de leitura...Bem, fiquei aflita, por saber que a minha filha estava a fazer a prova.
Tinham de fazer um convite para a tal sessão de leitura.
Na minha sala, os pequenitos estavam a fazer um convite para os amigos brincarem lá em casa!

Teresa Martinho Marques disse...

Pois...
Isto vai dar pano para mangas...

Nenúfar Cor-de-Rosa disse...

Duas coisas que me pareceram graves: o tema da composição sim, porque existiam tantas mas tantas possibilidades, que me pareceu extremamente redutor falar sobre um livro que leram...para além de que existiram dois alunos em 11 (na minha sala) que não tinham lido livro nenhum...uma inventou, outro não fez (este último não tinha nacionalidade portuguesa!).

Outra que me saltou à vista: as perguntas (várias) eram de resposta múltipla...qual é o objectivo?? Eles não terem a possibilidade de darem muitos erros?! Calculo que sim! Desculpa, mas acho tudo isto vergonhoso..esta prova, para mim, está ao nível de um 3º ano do 1º ciclo!! E mais é melhor não dizer...tenho medo da Prova de Matemática!!A ver vamos..

Teresa Martinho Marques disse...

Veremos...